segunda-feira, 26 de setembro de 2016

O mundo e as diferenças

Publicação original: O mundo e as diferenças


Quando eu estava entrando na adolescência já gostava de ler e lia muito mais do que leio agora. Certamente me firmei como leitora de verdade através da coleção Para Gostar de Ler, da Editora Ática, que serviu muito bem os jovens adultos da minha geração – todos eles com mais de 30 anos hoje – e de gerações anteriores.


Assim que a primeira onda de susto com o tema autismo passou e eu comecei a raciocinar mais em cima da questão das diferenças em geral, lembrei imediatamente do texto O Nariz, de Luis Fernando Verissimo, que li há mais de 20 anos, no livro O Nariz e Outras Crônicas, da coleção que mencionei. Relendo-o, vejo que ele me diz bem mais de mim, do mundo em que vivo e do que idealizo viver, do que disse àquela adolescente lá atrás. 

Trata-se da história de um dentista de bom nome, clientela certa, pai de família, vida social estável etc. Esse sujeito exemplar resolveu, um dia, comprar um nariz postiço – desses que encontramos fácil para compor uma fantasia de carnaval, com um par de óculos acoplado. Mas, ele não queria a peça para nenhuma ocasião festiva e passou a usá-la permanentemente para trabalhar, ir à padaria, ao clube, ficar em casa, enfim.

Essa decisão – de vestir o nariz – foi capaz de desfazer sua vida em todos os setores: perdeu clientes, amigos, foi enjeitado pela família, ganhou fama de maluco, acabou sozinho e, a contragosto, no consultório psiquiátrico. Tudo isso por conta de um acessório de plástico, que modificou sua apresentação física, sim, pois era uma diferença perceptível. Porém, não o impediu de continuar a ser o pai amantíssimo, o esposo fiel, o profissional pontual, a companhia amiga… Mesmo assim, nenhuma dessas características positivas parecia maior (aos olhos dos outros) do que o estranho narigão no meio do seu rosto.

A alegoria que Verissimo usou para compor esse pequeno e brilhante texto, que refletia a realidade de décadas (séculos, milênios?) atrás, poderia ter envelhecido, como eu envelheci, contudo, permanece com o vigor da juventude, atual e vitimando gente todos os dias. O mundo continua implacável com as pequenas e grandes diferenças: um nariz de plástico, um peito de borracha, uma profissão informal, um cabelo crespo, uma condição sexual, um carro velho, uma roupa fora de moda, um braço a menos, uma tatuagem a mais, um raciocínio lento, uma olimpíada de pessoas eficientes com alguma deficiência – quantos et cetera cabem aqui?

Não, as pessoas não estão preparadas para ler as entrelinhas das diferenças, para perceber que cada um individual e coletivamente tem muito a ganhar com o entendimento da diversidade. E que não se trata somente de aceitar o outro como ele é – convivência e troca vão além de aceitação. Ainda precisamos de leis para barrar o preconceito e a intolerância. Ainda temos veículos de comunicação fingindo que falam de todos para todos. Ainda temos escolas que não incluem. Ainda temos pais ensinando filhos a chamarem os colegas de aleijado, zarolho, retardado, mongoloide, cotó, débil mental. E, sobretudo, ainda temos vergonha de sair por aí, de peito aberto e cara lavada, usando nossos narizes de plástico e distribuindo aos outros gratuitamente mensagens que não são de puro ódio, mas de compreensão e amor.

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